segunda-feira, dezembro 14, 2009

Cantadas Ofendem!

Cantadas ofendem
As mulheres brasileiras andam na rua ouvindo o que não querem ouvir
Ivan Martins


Trabalhou comigo, anos atrás, uma moça da qual eu me lembro por três motivos. O primeiro é que ela comentou uma vez, de passagem, que quando estava se sentindo por baixo gostava de passar diante de um canteiro de obras: era inevitável que ao ver as suas pernas compridas os peões dissessem coisas que a faziam sentir-se bonita. Nunca esqueci esse comentário.

Outra coisa de que eu me lembro é ouvi-la contando, chocada, que estava parada num ponto de ônibus cheio de gente quando um sujeito gritou, de dentro de um carro, que ela tinha um nariz horrível. Chegou ao trabalho chorando de humilhação.
A última coisa de que me lembro é que ela vive em Paris há anos. Da última vez que conversamos não tinha planos de voltar.

Em Paris ela pode andar de minissaia, pode sair e beber sozinha e há pouco risco de que seja abordada, elogiada ou insultada. Às vezes eu acho que ela abriu mão dos galanteios dos peões para ficar livre dos insultos. Outras vezes acho que ela descobriu que não gostava nem mesmo dos galanteios.

De qualquer forma, acho que galanteadores e agressores se parecem: cada um deles, a sua maneira, acha que tem o direito de dizer o que pensa a uma mulher estranha.. Pode ser um elogio físico ou uma grosseria sexual, não importa. Em geral, trata-se daquilo que os americanos, apropriadamente, chamam de “atenção não solicitada.” Indesejada, na verdade.

Nas duas últimas semanas, desde que ocorreu a história da moça da Uniban, tenho pensado na forma como nós, homens brasileiros, tratamos as mulheres. Até que ponto aqueles tipos que xingaram a ameaçaram a moça do vestido cor de rosa se parecem com o resto de nós – atrevidos e eloquentes galanteadores brasileiros?

No início desta semana, quando discutíamos a baixaria da Uniban aqui no trabalho, uma de nossas colegas – jovem, bonita, discreta – pediu a palavra para fazer uma espécie de desabafo. “É difícil para uma mulher caminhar nas ruas de São Paulo”, ela disse. “A gente tem de andar olhando pro chão, fingindo que não escuta todas as besteiras que nos dizem”.

É isso, não é? Mulher bonita anda pela rua e vai sendo alvo de comentários em voz alta. Que cara, que bunda, que isso que aquilo. Se você, caro amigo, acha que elas gostam, pergunte. Minha amostragem sugere que a maioria detesta. Se sentem ameaçadas, intimidadas, insultadas. Querem ser deixadas em paz.

Esse assédio sobre as mulheres acontece à luz do dia, na porta do trabalho, na travessia de pedestres, dentro do ônibus. Às vezes o tom de voz do sujeito ou as coisas que ele diz amedrontam. Outras vezes dá asco ou dá vergonha. Nas baladas pode ser pior: o garanhão de calça agarradinha chega apertando o braço da moça, mexendo no cabelo, forçando a barra. Não aceita não como resposta. Mas quem deu licença a ele para dizer coisas e tocar o corpo de uma mulher desconhecida?
Nós, homens, demos licença. A cultura machista nos dá licença.

Assim como os talibãs agridem mulheres que se atrevem a andar sem burca – porque se sentem donos delas – nós dizemos o que queremos às mulheres que se atrevem a exibir sua beleza delas na rua, pela mesma razão. Se estiver acompanhada de um homem, vá la. Mas se estiver sozinha, sem dono, “causando”, vai ter de ouvir o que a gente quiser dizer. Ou pior. Pelo simples fato de que a gente pode.

Ouço dizer que isso acontece apenas em São Paulo, mas duvido. No Rio as garotas andam de biquíni na orla e de shorts em qualquer lugar, mas quando uma delas resolve fazer topless na praia, a tigrada atira areia e rosna ameaças. Passou do limite! Mas quem dá o limite do que a mulher pode ou não usar? Os talibãs da praia? Me contaram que outro dia uma adolescente com cara de estudante de moda teve de saltar de um ônibus na Avenida Paulista porque usava uma saia muito curta e foi ameaçada por uma turba. São os talibãs do ônibus.

No universo mental desses camaradas, mulher que não quer confusão se dá ao respeito: anda com as pernas cobertas, sem roupas ou adereços provocativos, discreta e modestamente. Fica no seu lugar. A rua é o espaço em que os homens fazem o que querem e as mulheres se comportam. Mulher que sai da linha ou chama atenção por ser bonita a turba trata como quer. Pergunto: há diferença filosófica entre isso e a misoginia que se pratica nos países islâmicos atrasados?

Com o risco de incorrer em exagero, acho tudo parecido com tudo. O sujeito que diz besteiras a uma moça que caminha na rua, o playboy que agarra a garota na balada, o cara que se esfrega na mulher do trem, o marginal que insulta a moça da Uniban. Tudo faz parte de um mesmo contínuo de desrespeito à mulher. Ele começa com o chato do bar, que insiste na cantada apesar de meia dúzia de nãos, e termina... Sabe-se lá onde termina.

Claro, todo comportamento social tem uma justificativa ideológica. Neste caso, a justificativa é a de que as mulheres gostam. Se você perguntar, vai ouvir dos conquistadores que, lá no fundo, elas querem ser assediadas, agarradas, elogiadas com bastante pimenta. Faz bem para o ego delas, explicam. Claro, por trás de todo grosseirão há sempre um especialista na alma feminina. Mas eu suspeito que eles estejam errados.

Minha opinião, pelo que vale, é que esse tipo de comportamento insultuoso tem de ser reprimido: socialmente e, se necessário, pela polícia. As mulheres têm direito de andar sozinhas pelas ruas, vestidas como quiserem, e serem respeitadas. E elas são o melhor juiz do que é ou não é desrespeitoso. Se o sujeito cruzou o limite, chama a polícia, avisa o segurança, pede ajuda ao dono do bar. Não faz sentido, em pleno século 21, que nossas filhas, namoradas, irmãs ou amigas tenham de andar pelo mundo com os olhos no chão porque um bando de homens não se aguenta nas calças.